quinta-feira, maio 29, 2008

Paixão


Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, nem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou no estrada da vida...
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelo vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

Álvaro de Campos


Hoje li este poema na aula. Ao lê-lo, enrolei-me nas palavras, deixei que estas me tomassem de um só trago e ganhassem corpo. Quando cheguei ao fim, senti o prazer que se sente ao provar um bom vinho tinto.
Apaixono-me ( mais e mais ) por Pessoa a cada leitura.
Agasalho-me na malha dos seus novelos e deixo-me ficar.
Os meus alunos não conseguem retirar este prazer, nem sequer o entendem mas concluem: "A professora deve gostar mesmo muito do Fernando Pessoa".
Gosto muito! O brilho nos olhos nunca engana!

5 comentários:

MoonDreamer disse...

Lembro a primeira vez que ouvi este poema... era um programa na rtp1 em que uma figura pública recitava poesia.
Prendeu-me do princípio ao fim.
Antes de aparecer o nome de quem escrevera disse... isto é pessoa.
Desde esse dia, está constantemente na minha vida... mais particularmente num velhinho placard de cortiça onde trabalho. Sabe bem sabê-lo ali!

Teresa Domingues disse...

Belo!!!
:)

Serigaitas disse...

Pessoa é uma forma de sentir, mais do que um simples poeta. Ler Pessoa é viajar nos nossos sentimentos mais escondidos e naqueles mais à superfície que não queremos sentir, mas que não podemos negar.
Saber ler Pessoa, é um dom. Querer ler Pessoa é um desafio. Ler Pessoa é um estado de alma.

Serigaita B.

Matchbox32 disse...

Palavras para quê? Depois de poemas destes.... fica-se como que enfeitiçado, sem capacidade para falar...

Haddock disse...

sim, salta a vista que adoras pessoa.
mas diz-nos, cemremos, ele conduzia??